Há pelo menos duas décadas que vivemos embalados na promessa de que na Saúde é a cidadania quem mais ordena. É verdade que os utentes de saúde e doentes revelam um grau superior de informação, pretendem aprender a autocuidar-se (pela prática de uma automedicação responsável e usando vários mecanismos de prevenção da saúde). E é verdade também que mudou a atitude dos profissionais de saúde, revelam uma maior disponibilidade para comunicar com o doente, ajudando-o a capacitar-se.
Nos preâmbulos da legislação que ora se reproduz encontramos expressões como esta: “o SNS deve organizar-se de acordo com as necessidades e preferências do cidadão, no respeito pela sua dignidade e autonomia, focando-se na qualidade e na ética da prestação de cuidados e deve promover a disponibilidade, acessibilidade, comodidade, celeridade e humanização”. Que bonitas palavras que não encontram realidade na prática quotidiana.
Os melhores documentos que se têm produzido sobre saúde apelam à participação dos cidadãos, a um sistema de saúde centrado nas pessoas, à literacia em saúde, a falar menos na doença e mais na saúde. Entretanto, temos os doentes crónicos, sabemos que são muitos, há quem fale em cinco milhões, mas também em quatro, três ou dois, como não há estatísticas todas as predições não precisam de demonstração.
Em 31 de maio passado, a Secretária de Estado da Saúde produziu o Despacho n.º 5350/2019, que saiu no Diário da República nesse dia. O objetivo é a prevenção e a gestão da doença crónica, quadro de intervenção onde há respostas: cuidados de saúde primários, cuidados hospitalares, cuidados continuados, cuidados paliativos e cuidados no domicílio. Como há necessidade de consertar todas estas vertentes, um membro do Governo determinou a criação de um grupo de trabalho com o objetivo de produzir orientações estratégicas para a prevenção e gestão da doença crónica, determinando competências e a constituição de quem nele vai trabalhar, exigindo que até 30 de junho este grupo de trabalho apresente um relatório. É nestas e noutras coisas que se vê como continuamos polarizados pela sociedade do espetáculo.
Os membros do grupo de trabalho ou vêm todos do Ministério da Saúde ou representam as Ordens dos Médicos e dos Enfermeiros. Ninguém fala em auscultar doentes crónicos, é evidente que não podem ser consultados todos nem todas as associações. Mas ao menos podia-se sugerir ouvir as que mais representam nas despesas em Saúde: as do foro cardiovascular, as doenças respiratórias, o cancro, a diabetes. Ao menos estas, para simular que não se vive em despotismo institucional – os funcionários da Administração Central do Sistema de Saúde, os da Rede Nacional de Cuidados Continuados Integrados, os da Reforma do Serviço Nacional de Saúde, os representantes dos médicos e dos enfermeiros estão dotados de ciência infusa, são portadores do milagre do esclarecimento.
Nem os farmacêuticos contam, os mesmos que um pouco por toda a parte na Europa estão envolvidos em programas da gestão da doença crónica, de colaboração com os outros profissionais de Saúde. É com esta mentalidade que continuamos a marcar passo e a simular que todos temos um papel a desempenhar… no SNS concebido por quem manda, os doentes crónicos são um mero epifenómeno. Para que conste.
Beja Santos